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A cidade portuguesa e a arquitectura que a constrói sempre acompanharam e participaram nos processos e soluções de outras áreas culturais europeias. Esta realidade torna-se mais objectiva, comprovável, ao observarmos as cidades no último século.
     A identidade das redes e cidades das nações europeias decorre do modo como as suas culturas incorporaram as condições económicas, políticas, culturais na sua evolução, determinando-lhes o carácter por confronto com a geografia, a topografia, o clima.
     Estes três factores naturais, num quadro de culturas abertas, tendem a ver atenuados os seus efeitos, o que tem permitido uma genérica uniformização da cidade europeia quanto à sua organização e desempenho, forma, oportunidades e estilos de vida; uniformização que parece ser desejada pelo homem que se pretende global.
     Mas esta globalização urbana não se faz à revelia das assimetrias que marcam as sociedades; pelo contrário. As desigualdades de cultura, de formação, de participação cívica e política, de capacidade de influência na produção como na propriedade, que marcam o passado e existem no presente, são transmitidas à cidade, seccionando e diferenciando a forma e o uso que dela fazemos. Afinal, a similitude entre as cidades europeias também o é na descontinuidade política e social que as marca. 
     A cidade europeia e todo o processo de urbanização contemporâneo, que na segunda metade deste século atingirá elevadíssimo grau de concentração demográfica também nos outros continentes, têm por origem a migração de povos e de grupos, com os mais diversos motivos.
     Também a cidade portuguesa é uma cidade de migrantes, mais do que o resultado de um estável e continuado, no tempo como no espaço, crescimento demográfico endógeno, que garantiria maior fiabilidade social, cultural. Nesta cidade verificam-se complexos processos de adaptação e de integração, onde as condições que os migrantes transportam se contrapõem às condições que encontram nas cidades de destino – o que se faz em conflito entre eles e com os que já se apossaram da cidade mas não a querem partilhar, tendo sido migrantes na sua ou em gerações próximas.
     As cidades portuguesas crescem e sedimentam-se como lugares de migrantes. O último meio século, de forma intensa, produziu cidades que são estes lugares; com diferentes motivos mas confluentes e que todos temos presente. É uma dinâmica migratória sem precedentes, que se pode representar de duas maneiras: o movimento para toda a orla costeira atlântica (desertificando o interior); o movimento, dentro deste, que parte de ocupações dispersas, de lugares e aldeias para as vilas e, destas, para sedes de concelho, destes para cidades e capitais distritais – por fim contribui para a criação e ampliação de áreas metropolitanas (desertificando o interior de cada região).
     Independentemente das soluções urbanas criadas, que seguramente são uma má herança construída, estes dois movimentos promoveram a concentração populacional e, com ela, uma acrescida e positiva massa crítica. 
     Em apenas 60 anos (1950-2010), milhões de portugueses pertencentes a três gerações, de que a mais nova é hoje de crianças, migraram para realidades urbanas que lhes eram estranhas (em Portugal, mas também em países da Europa, da América do Norte e do Sul, de África e da Ásia), onde não possuíam raízes sociais ou de actividade, deixando atrás uma habitação rudimentar, sem infra-estruturas básicas nem equipamentos e serviços de apoio à vida familiar e colectiva; sem condições de habitabilidade e conforto. Basta ter presente os inquéritos à habitação rural (de 1943 e 1947) de Lima Bastos, Castro Caldas e Henrique de Barros e os inúmeros levantamentos e estudos urbanos.*
     À população sedeada nas cidades – que continuava credora de qualidade nas suas habitações e onde uma verdadeira cultura da casa se não tinha sedimentado, nem mesmo, em muitos casos e em épocas anteriores, entre as classes dominantes –, vêm juntar-se milhares e milhares de famílias provenientes das mais deploráveis condições de habitação: a dos seus lugares de origem, país fora.  
     O “espaço” – privado, público, de produção, quando existentes – de onde provinham os migrantes nada tinha que ver com o “espaço urbano” ou tendencialmente urbanizado em que se instalavam, já que agora se encontravam num mais vasto ambiente de relações colectivas e públicas; mas a sua inclusão, obrigatoriamente, era filtrada por constrangimentos que dificultavam a sua organização na cidade.
     Os caminhos para a habitação destes milhares de famílias foram, a partir de 1933, sobretudo dois: a habitação social, dirigida aos estratos mais insolventes e às clientelas políticas, com gestão e produção do Estado Novo e, depois de 25 de Abril 1974, do Estado Social; a habitação para o mercado, esta produzida com fins (altamente) lucrativos é deixada à iniciativa privada. O processo migratório foi tal que a produção de habitação se organizou como o principal sector empregador, produtivo e lucrativo do país, até ao advento da crise subprime de 2008.
     Neste movimento, a falta de referências a culturas do habitar e da casa, perdidas ou inexistentes umas e ainda não maturadas outras, negadas pela endémica penúria material e cultural, era tal que, quer para os programas sociais quer para a organização do espaço urbano, se procurou um conhecimento e fazer técnico que fossem capazes de se apresentar como neutros perante o conflito social que a nova ordem procurava absorver, mais do que resolver, mediante o planeamento urbano e a produção de habitação social. E tal conhecimento encontrava-se nas propostas da moderna arquitectura, racionalista, objectiva, capaz de sistematizar programas, de criar uma máquina de habitar que permitiria melhorar condições de vida ao definir a casa como um espaço instigador de boas normas. Este caminho serviu quase todas as situações e regimes: do socialismo democrático ao socialismo totalitário e ditatorial, do nacional-socialismo ao fascismo, das repúblicas democráticas às monarquias constitucionais e aos mais sofisticados modelos de capitalismo, sem excepção. Seria difícil pensar resolver o problema da habitação e do crescimento da cidade, embora com limitações, fora deste quadro, de ideologias e de soluções com sentidos contraditórios, que se apresentava pragmaticamente técnico, e de que era depositário o Movimento Moderno na arquitectura.
     A casa foi e tem sido um meio de controlo social, desde logo como promessa eleitoral; aspecto que tanto condicionou a sua produção no Portugal do pós-25 de Abril. Mas é-o, também, no processo de integração social (na aceitação de uma ordem política, social, moral), ao ser atribuída ou escolhida, segundo uma posição na cidade, e no que a casa pode exibir como “gosto” ou “estilo”, que insere quem a detém num determinado nível social ou, pretensamente, fora dele. Também neste sentido a casa é um espaço social e o seu interior, a forma de a ocupar e usar (organização, representação, objectos) constitui um retrato, por a casa ser aquele indivíduo ou família. 
     A casa, no relacionamento social quotidiano, funciona como um mecanismo de classificação social, quase sempre certeiro e impiedoso, cruel até quando existe algum desvio de juízo; porque nela se ultrapassam as máscaras que lhe coloquem para ocultar origens, para as nobilitar ou transgredir. Porque a casa é acumulação de memórias e de afectos, de experiências, ou a falta de parte ou de tudo isto.
     Para os migrantes, o lugar da “sua” arquitectura tem sido barracas, a sobreocupação e, depois, os bairros económicos, as periferias (a cidade-quartel), a cidade sedimentada e com alguma história e os seus bairros. Todo este percurso anda a par e passo com a cidade preexistente: uma cidade em constante substituição, na sua arquitectura, edifício a edifício, na sua forma, feita de muitas formas. Esta cidade, incapacitada de fixar a própria memória, dificilmente se transmite para além da própria geração.
     Curiosamente, neste contexto, tem cabido aos bairros sociais o papel de resistentes, cuja presença os torna elementos de referência numa realidade em permanente mutação e de muitas identidades. Curiosamente, é este elemento de pertença, de continuidade, aquilo que mais é referido pelos moradores dos ditos “bairros-problema”. Quando se esperaria ouvir a sua renúncia, ouve-se a afirmação da sua pertença ao “bairro”. À continuidade destes bairros não é estranho, claro, o facto de o tipo de propriedade e de usufruto apresentar maior inércia à mutação. 
     Segredo bem guardado para a nossa curiosidade de conhecer estes processos que ligam migrantes e cidade, com todas as suas contradições, ódios e paixões, é a tão procurada causalidade entre forma e comportamento de quem a habita, e entre forma urbana e possibilidade de segurança (a que até os próprios condomínios fechados parecem não dar uma resposta cabal).
     Existirá(ão) forma(s) que garanta(m) a “segurança”?
     Em que relação(ões) estão os comportamentos humanos com a tipologia do fogo (sua organização, relação espacial interna, equipamento) e com a morfologia do edifício onde se inscreve? E entre esta e a forma de vida que, com ela, a cidade toma?
     A experiência revela muitas contradições, que são já exemplos clássicos de perplexidade entre os cultores da nossa disciplina.
     Certo é que os mesmos espaços produzem diferentes comportamentos e um mesmo comportamento pode ser referido a diferentes espaços. Existirão algumas coincidências mas também parece que a forma do espaço e o seu desempenho conferem um notável grau de liberdade ao comportamento da família e dos grupos, em casa como na sociedade.
     Sem educação, formação e emprego, sem pertença à sociedade, pouco se poderá esperar de melhor para muitos milhares de famílias na sua relação com a casa. O conhecimento da arquitectura que produzimos não avançará se continuarmos reféns de um sentimento de culpa pela exclusão social, onde a habitação é o elo fraco e último, apenas o mais evidente, a que se pede a solução de todos os males.|

 


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